De desertos e órfãosQuando um progenitor lança a sombra dos seus projetos sobre os filhos, eles acabam por ter destinos que, habitualmente, não são felizes. O maior dom da parentalidade é o dom do abandono, evitando sufocar os próprios filhos com os nossos projetos, as nossas expectativas. O maior dom da parentalidade é, como Abraão, confiar o filho ao deserto, não o sufocar em projetos, saber deixá-los ir.O deserto é metáfora da existência, mesmo da existência não visitada por Deus. A vida humana é vida que herda alguma coisa do outro, sempre e necessariamente, pois procede do outro: não há vida humana que se gere a si mesma, porque a vida é sempre um processo de filiação. Massimo Cacciari lembra-nos que a raiz etimológica do termo «herdeiro» é «órfão»: cada herdeiro é simultaneamente órfão, quer dizer, os outros de quem provém, a começar pelos pais, não estarão em condições de proteger a sua existência debaixo de um guarda-chuva que abrigue a vida do trauma, da ultrapassagem dos limites, etc. Neste sentido, somos simultaneamente herdeiros e órfãos. A metáfora de nos confiarmos ao deserto é uma metáfora que fala do percurso da existência. A existência é sempre num deserto. Cada um de nós é órfão e também herdeiro; por isso, devemos inventar constantemente a nossa herança. A herança não consiste simplesmente em receber do outro os genes, os bens, as rendas, as propriedades e os reinos como Telémaco. Poucos de nós teremos recebido reinos. É mais comum recebermos dívidas e, por vezes, restos. Todos nós, enquanto órfãos, nada recebemos; na herança há sempre um fundo de nada. Confiar um filho ao deserto tem a ver com esta relação entre ele ser simultaneamente herdeiro e órfão.