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Conteúdo anterior Anterior De Torradeiras e TchékhovPara Tomás de Aquino, o Deus Criador não é uma hipótese sobre a origem do mundo. Ele não pretende competir com a teoria de que o universo resultou de uma flutuação aleatória num vácuo quântico. Na verdade, S. Tomás ponderou até a possibilidade de o mundo não ter tido origem alguma. Dawkins comete um erro de categoria quanto àquilo que ele acha que a fé cristã é: imagina-a como um género de pseudociência ou como algo que dispensa de todo a necessidade de evidência. Alimenta também uma noção cientificista antiquada daquilo que constitui evidência. Para Dawkins, a vida parece dividir-se entre as coisas que se podem provar para lá de qualquer dúvida e a fé puramente cega. Não consegue perceber que as coisas mais interessantes não encaixam em nenhum desses lugares. Christopher Hitchens comete o mesmo erro grosseiro, alegando que "graças ao telescópio e ao microscópio, [a religião] já não oferece uma explicação importante acerca de nada." Mas o cristianismo nunca foi uma explicação de coisa alguma. É como dizer que graças às torradeiras podemos esquecer Tchékhov.De facto, suponho que onde a ciência e a religião mais se aproximam para o cristão não é naquilo que dizem sobre o mundo, mas no acto da imaginação criativa que ambos os projetos envolvem – um ato criativo cuja fonte o crente encontra no Espírito Santo. Cientistas como Heisenberg ou Schrödinger são artistas supremamente imaginativos, que no que ao universo diz respeito estão cientes de que o elegante e belo tem mais probabilidade de ser verdadeiro do que o feio e disforme. De um ponto de vista científico, a verdade cósmica é, no sentido mais profundo, uma questão de estilo, como Platão, Wilde e Keats sabiam.Para a teologia cristã, Deus é aquele que, pelo seu amor, sustenta todas as coisas no ser, e que continuaria a sê-lo ainda que o mundo não tivesse princípio. A criação não trata de fazer aparecer coisas: Deus é a condição de possibilidade de qualquer entidade. Dado não ser Ele próprio um qualquer tipo de entidade, não devemos pensá-lo ao lado dessas coisas, do mesma maneira que a minha inveja e o meu pé esquerdo não constituem um par de objetos.Conteúdo seguinte Seguinte Dos Sacramentos e dos DeveresDurante algum tempo, trabalhei na enfermaria de ortopedia, onde estavam senhoras idosas com fraturas nas ancas e nas pernas. As mais novas tinham mais de 60 anos. Aproximavam-se da terceira idade quando tinham 80 anos e, passados os 95 anos, admitiam então que estavam velhas. A princípio, achei estranho chamá-las pelos seus nomes próprios, mas era o costume do hospital e rapidamente me habituei.Essa enfermaria deu cabo de mim, porque o trabalho era muito pesado. Havia uma mulher com barba e sem peito, e as enfermeiras falavam dela disfarçadamente, dizendo que era uma aberração. Tinha um péssimo temperamento, atirava coisas às enfermeiras e os seus hábitos eram imundos, pelo que precisava constantemente de ser limpa. Era um autêntico castigo tratar dela.Tinha de cerrar os dentes e suster a respiração enquanto a lavava, para controlar a minha aversão.Trabalhar nessa enfermaria foi a parte mais dura do meu trabalho no hospital. Uma tarde, quando tinha estado a limpar durante todo o dia e a malvada paciente atirou novamente o seu bacio para o chão, sujando os meus sapatos e as minhas meias, deixei a enfermaria lavada em lágrimas e sentei-me na casa de banho a chorar descontroladamente pela fealdade e miséria da vida. Não consegui parar de chorar durante tempo suficiente para ir avisar a menina Adams, para que as minhas pacientes não ficassem sozinhas, e fiz uma coisa imperdoável: fugi para o meu quarto, onde continuei a chorar. Vou lembrar-me sempre da amabilidade com que a enfermeira-chefe veio ter comigo e me falou das responsabilidades das enfermeiras e da dignidade da sua profissão, bem como do «sacramento do dever». Jamais esqueci essa expressão.